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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

PL sobre controle jurisdicional de políticas públicas é constitucional (Por Ada Pellegrini Grinover, Paulo Henrique dos Santos Lucon e Kazuo Watanabe)

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 8.058/2014, do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que visa instituir processo especial para controle e intervenção em políticas públicas pelo Judiciário. O projeto surgiu da necessidade de se regulamentar fenômeno recorrente na prática — a intervenção do Judiciário em políticas públicas —, que até então tem se desenvolvido no país sem qualquer referencial normativo, o que resulta em indesejadas decisões com caráter particularista, inexequíveis ou descoladas da realidade.
O  Judiciário brasileiro, há muito tempo, deixou de cumprir apenas a função que tradicionalmente lhe é atribuída — resolver com justiça litígios individuais de caráter patrimonial — para assumir também um papel de destaque no cenário político, assegurando, diante da inércia e da ineficácia de atuação dos outros poderes estatais, a efetivação de direitos e de garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988.
Ocorre que, até então, não obstante o esforço da doutrina e da jurisprudência neste sentido, tal atividade tem sido desenvolvida pelo Judiciário sem a existência de balizas legais precisas a orientar a conduta dos magistrados postos diante da necessidade de decidir questões cujos reflexos, por diversas vias, atingem a toda a sociedade (como sistemas escolares, estabelecimentos carcerários, instituições e organismos destinados à saúde pública, acesso ao transporte, moradia, saneamento, mobilidade urbana etc.). Derivam daí os litígios de interesse público, desenvolvidos a partir da década de 50 do século passado no direito norte-americano.  Amplamente conhecido é o emblemático caso “Brown vs. Board Education of Topeka”, conduzido pela Corte Warren, juntamente com outros precedentes que permitiram o desenvolvimento da doutrina. Mauro Cappelletti foi o grande propulsor dessas idéias, em 1976.[1] E entre nós, mostrando as transformações apontadas por Chayes,[2] manifestou-se Fábio Konder Comparato sobre as características da chamada public law litigation.[3] Como se vê, as ideias do PL que institui o controle jurisdicional de políticas públicas nada têm de só jabuticaba ou tupiniquim, bem ao contrário do que pensam os desavisados críticos. Elas são reflexos da experiência norte-americana, bem como de outros países, como África do Sul, Índia, Colômbia e Argentina, apenas para citar alguns. No curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, discute-se o tema há mais de dez anos. Portanto, nada de novo, nada de exclusivamente nacional.
Contra tal iniciativa legislativa, insurgiram-se, contudo, em artigo publicado no Consultor Jurídico em 10 de fevereiro de 2015, Lenio Luiz Streck e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima.[4] Segundo eles, o Projeto de Lei não só conteria inconstitucionalidades, como também, se aprovado, permitiria que o Judiciário se sobrepujasse aos demais poderes estatais, o que os levou, portanto, a bradar pelo arquivamento do projeto.
Tirante o sarcasmo presente em grande parte da crítica, que em nada contribui para o debate de ideias e para o consequente aprimoramento da administração da justiça em nosso país (Por que tanta perseguição à jabuticaba? O que é típico do nosso país por si só não é bom?) e antes revela uma compreensão bem equivocada do tema, decorrente, por certo, do desconhecimento da matéria e de uma leitura apressada do texto projetado, as objeções suscitadas por tais autores ao mencionado Projeto de Lei não subsistem a uma análise mais acurada.
Afirmam os autores, por exemplo, que “se aprovado o PL 8.058/2014 o Judiciário deixará de ser somente Judiciário. Executivo e Legislativo estão destinados a desaparecer diante da competência do Poder Judiciário. Basta que se leia os artigos iniciais do mencionado PL. Coisa bem ‘jabuticaba’, como poderão perceber. Já de pronto, o artigo 2º afirma que o controle das políticas públicas reger-se-á pelos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, justiça social atendimento ao bem comum, universalidade das políticas públicas e equilíbrio orçamentário. Que todos estes ‘princípios’ (sic) já estão na Constituição e nas Leis, não é surpresa. Que todos estes já são, infelizmente usados como bem entende qualquer juízo, também não traz nada de novo, infelizmente”.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o Projeto de Lei não atribui qualquer competência ao Judiciário que a Constituição já não o tenha feito. É, aliás, da própria Constituição Federal, no artigo 5, parágrafo 1º — de acordo com o qual, as normas que estatuem direitos fundamentais têm aplicação imediata —, que decorre a legitimidade do Judiciário para atuar nos casos em que a inércia dos outros poderes estatais impede a satisfação de determinado direito fundamental. Trata-se simplesmente do exercício do controle da constitucionalidade, pelo qual o Judiciário é chamado – sempre a posteriori – para verificar se a ausência de uma política pública ou se a política pública criada e implementada pelo Legislativo ou pelo Executivo fere os direitos fundamentais ou não é adequada.
O que faz o Projeto de Lei, em realidade, em sentido contrário ao afirmado pelos referidos autores, é procurar limitar o subjetivismo judicial na tomada de decisões que determinam a implementação de uma certa política pública pela regulamentação que estimula o diálogo e a cooperação institucional entre os poderes estatais ao longo de todas as fases do processo.
A criticada positivação de princípios no artigo 2º, do Projeto de Lei, como o da proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, ademais, também cumpre a função de limitar o subjetivismo judicial. Tais princípios, se bem compreendidos, limitam as hipóteses em que a intervenção do Judiciário se justifica. Assim, por exemplo, “por meio da utilização de regras de proporcionalidade e razoabilidade, o juiz analisará a situação em concreto e dirá se o legislador ou o administrador público pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade, estabelecidos pela Constituição. E assim estará apreciando, pelo lado do autor, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público. E, por parte do Poder Público, a escolha do agente público deve ter sido desarrazoada (...) a intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer em situações em que ficar demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade”.[5]
A regulamentação levada a cabo pelo PL, a propósito, em nada desmerece os demais poderes estatais como querem fazer crer mencionados autores (“Pois parece que o ilustre deputado Paulo Teixeira, em vez de combater o ativismo, resolveu regulamentá-lo. Ou seja, já que não podemos solucionar um problema, melhor é institucionalizá-lo.”). Não incumbe ao Legislativo “combater” o ativismo judicial, pois essa é uma tarefa irrealizável. Não se pode exigir do Legislativo que ele anteveja e, portanto, discipline todas as situações que podem por ventura ensejar a intervenção justificada do Judiciário na implementação de uma determinada política pública. O que pode, e o que deve fazer, o Legislativo é estabelecer parâmetros de conduta aos magistrados que se deparam com a necessidade de julgar causas dessa natureza. Trata-se de um modo de legislar moderno e consentâneo com as características da atual sociedade.
O novo processo que se está a instituir para disciplinar o controle jurisdicional de políticas públicas, se aprovado o Projeto de Lei, portanto, é marcado pelo incentivo ao diálogo e à cooperação institucional e pela flexibilidade de seu procedimento. Uma das principais causas de atritos entre os poderes estatais decorre da falta ou da dificuldade de comunicação entre eles a respeito das expectativas e das limitações de cada um no que condiz à implementação de uma determinada política pública. Não são raras as vezes em que o Judiciário, por exemplo, determina a realização de certa medida visando à satisfação de um certo direito fundamental sem nem sequer conhecer as limitações orçamentárias do Poder Executivo para tanto. Como efeito disso, a determinação judicial se torna ineficaz e o Judiciário perde legitimidade.
Por isso, de acordo com a nova lei, uma das primeiras providências a ser tomada pelo juiz antes de tomar qualquer decisão será a de notificar a autoridade responsável pela implementação da política pública em questão para que sejam apresentadas, por exemplo, informações sobre a existência de recursos financeiros previstos em seu orçamento para a implementação dessa política, ou então, a respeito do cronograma necessário a sua implementação (artigo 6º do PL). A formação do convencimento judicial, assim, se dará de maneira mais adequada, sem se descolar da realidade que envolve a implementação de uma política pública. Para melhor formação de seu convencimento, o magistrado poderá ainda designar a realização de audiências públicas que contarão com a participação de representantes da sociedade civil e de instituições e órgãos especializados (art. 10 do PL), conforme o artigo 10 do PL. Em tal ocasião, o magistrado terá possibilidade, por exemplo, de tomar conhecimento do que pensa a opinião pública a respeito da política pública em questão e será informado dos impactos que a sua decisão acarretará. Não fossem previsões dessa natureza, o que teríamos são aquelas decisões de gabinete em que o magistrado deve formar sua convicção a respeito de tema tão controverso e interdisciplinar tão somente a partir de duas visões diametralmente opostas. (As faculdades de direito não precisarão formar “bacharéis-versados-em-‘políticas públicas’”, como temem os autores, mas pobre do curso jurídico que em pleno século XXI não forneça aos seus estudantes uma visão interdisciplinar dos fenômenos sociais)
Da mesma forma, no ato de julgar, para assegurar a eficácia de sua decisão, o juiz poderá determinar ao ente público responsável a apresentação de um planejamento necessário à implementação da política pública em questão, o qual será objeto de debate entre o juiz, o ente público e os demais representantes da sociedade civil. A execução dessas decisões, portanto, se dará de maneira dialogal e colaborativa, o que tende a torná-la mais eficaz sem que o Judiciário se substitua ao administrador público. O juiz poderá, por exemplo, de acordo com o artigo 20, do PL, de ofício ou a requerimento das partes, alterar a decisão na hipótese de o ente público promover políticas públicas que se afigurem mais adequadas do que as determinadas em sua decisão. Por isso, é de se perguntar: que autoritarismo judicial é esse visualizado e tão temido pelos dois autores que criticaram o projeto? Além disso, em prol de sua efetividade, a decisão também poderá determinar ao Poder Público que inclua verbas no orçamento do ano em curso ou do ano futuro, com a obrigação de que elas sejam efetivamente aplicadas na implementação ou correção da política pública requerida.
De acordo com os dois críticos tal dispositivo seria inconstitucional: “de que modo podemos imaginar que uma autoridade pública poderá informar um juiz a possibilidade de ‘transposição de verbas’, cujos orçamentos foram aprovados por leis complementares e leis ordinários do Poder Legislativo? Como imaginar que uma decisão judicial altere estas leis no mesmo orçamento ou imponha determinações financeiras de gastos a orçamentos futuros os quais não constam das leis de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais a que estão obrigados todos os Entes da Federação?”. A resposta a essas questões é simples: a implementação de uma política pública depende, em primeiro lugar, de disponibilidade financeira — a chamada reserva do possível. E a justificativa mais usual da administração para a omissão reside exatamente no argumento de que inexistem verbas para implementá-la (...). O Judiciário, em face da insuficiência de recursos e de falta de previsão orçamentária, devidamente comprovadas, determinará ao Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamentária a verba necessária a implementação da política pública. E, como a lei orçamentária não é vinculante, permitindo transposição de verbas, o Judiciário também determinará, em caso de descumprimento do orçamento, a obrigação de fazer consistente na implementação de determinada política pública (...) Para tanto, o parágrafo 5 do artigo 461, CPC, servirá perfeitamente para atingir o objetivo final almejado. Desse modo, frequentemente a ‘reserva do possível’ pode levar o Judiciário à condenação da Administração a duas obrigações de fazer a inclusão no orçamento da verba necessária ao adimplemento da obrigação; e à obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação”.[6]
Também não encontra correspondência com a realidade a crítica que os mencionados autores tecem a uma suposta ausência de visão do Projeto de Lei para a natureza essencialmente coletiva dos direitos envolvidos com a implementação de políticas públicas: “a quase unanimidade dos intelectuais da área de saúde coletiva, por exemplo, condenam fortemente o conhecido fenômeno da ‘judicialização da saúde pública’, com decisões individuais a desorganizarem qualquer planejamento orçamentário e, principalmente a conceber o direito à saúde ou à educação como individuais e não coletivos. Para além dos aspectos constitucionais, O PL 8.058/2014 simplesmente ignora este acúmulo histórico vivido pela área de saúde pública, remetendo o poder de decisão sobre tão importante política para juízes os quais não são formados para tal”. Ao contrário do afirmado, o PL em nenhum momento ignora a natureza coletiva desses direitos, tanto que  é coletivo  o processo nele disciplinado, mas com caraterísticas especiais já mencionadas (conforme artigo 1º, parágrafo único, incisos I a XI, do Projeto de Lei), que o diferenciam do processo coletivo hoje existente.  No artigo 1º, entre os princípios que o regem, estão destacados o do “atendimento ao bem comum” e o da “universalidade das políticas públicas”, que tornam induvidosa a característica de processo coletivo.  O processo individual está disciplinado apenas nos artigos 27 a 29.  Todos os demais dispositivos são pertinentes ao novo processo coletivo.  Além do mais, o projeto prevê a reunião de processos semelhantes para julgamento conjunto, de modo que a decisão a ser prolatada seja equitativa e exequível, como prevê os artigos 23 e 25 do PL), e ainda determina, em seu artigo 28, que “na hipótese de ações que objetivem a tutela de direitos subjetivos individuais cuja solução possa interferir nas políticas públicas de determinado setor, o juiz somente poderá conceder a tutela na hipótese de se tratar do mínimo existencial ou bem da vida assegurado em norma constitucional de forma completa e acabada, nos termos do disposto no parágrafo 1º do artigo 7, e se houver razoabilidade do pedido e irrazoabilidade da conduta da Administração”. Para adequada tutela dos direitos coletivos, no artigo 30, do Projeto, há também a previsão de hipóteses que autorizam a conversão da ação individual em coletiva.
Por tudo isso, diferentemente daqueles que bradam pelo arquivamento de tão importante Projeto de Lei, não temos receio de defender a sua aprovação. Afinal, com  a aprovação dessa lei, a ser levada a cabo na Câmara dos Deputados, e com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, o Judiciário brasileiro passará a dispor de um instrumental que o tornará mais apto a cumprir a missão que lhe foi outorgada pela Constituição.
([1]). Cappelletti, Mauro, Vindicating the Public Interest Through the Courts: A Comparativists’ Contribution, 25 Buffalo L, Rev., 643, 1976.
([2]) . Chayes, Abram, The role of the judge in Public Law Litigation, H.
([3]). Comparato, Fábio Konder, Novas funções judiciais no Estado Moderno, Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, São Paulo, RT, vol 4, maio de 2011, p. 720. Eis as características do novo processo, magistralmente traçadas pelo mestre: “Observou-se, assim, que a sua estrutura diferia do processo tradicional em vários pontos. Os autores não litigam por interesse próprio, mas agem sem mandato na defesa de interesses coletivos. O objetivo da demanda não é resolver um litígio composto de fatos já acontecidos, mas editar normas de conduta para guiar o comportamento do réu no futuro. O provimento judicial não é necessariamente imposto, mas com frequência negociado entre as partes. O juiz não decide questões de direito sobre a interpretação de normas jurídicas, mas soluciona problemas de natureza econômica ou social, com o auxílio dos mais diferentes expertos, para criar normas gerais a partir dos fatos presentes e da evolução previsível”.
([4]). Ver: “Lei das Políticas Públicas é ‘Estado Social a golpe de caneta?’”. O texto na íntegra pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: (http://www.conjur.com.br/2015-fev-10/lei-politicas-publicas-estado-social-golpe-caneta).
([5]). Ver: Ada Pellegrini Grinover, O controle jurisdicional de políticas públicas, in. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas (orgs. Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe), Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 125-150, esp. pp. 137-138.
([6]). Ver: Ada Pellegrini Grinover, O controle jurisdicional de políticas públicas, in. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas (orgs. Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe), Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 125-150, esp. p. 138.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-fev-23/pl-controle-jurisdicional-politica-publica-constitucional

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